A secularização da sociedade encontra-se no apogeu do
seu desenvolvimento. Tal processo, entendido como um momento da história
mundial em que a religião e, mais especificamente, a crença em Deus, deixa de
ser uma opção racional para o ser humano, teve suas bases fincadas nos séculos
XVIII e XIX, mas ganhou forma substantiva no decorrer do último século.
Concretamente, poderíamos dizer que até meados do século XX ele vinha tomando
corpo teórico, formando um conjunto de pensamento que negaria a verdade
absoluta e relativizaria a realidade, para, nas últimas décadas disseminar-se
nas diferentes esferas sociais.
Segundo
o sociólogo alemão Max Weber (2004), este seria o momento da modernidade
propriamente dita, do “desencantamento do mundo”, isto é, a época histórica em
que a racionalidade científica entraria em choque com a visão tradicionalista da
religião, e esta perderia o espaço da legitimidade discursiva. O “mundo
encantado” da fé seria, em face disso, solapado pelo “mundo desencantado” da
razão. Isso não quer dizer que a religião deixaria de existir. Não é esse o
ponto. O que o pensador alemão estava dizendo, a exemplo do filósofo Friedrich
Nietzsche, é que Deus estaria morto enquanto modelo explicativo, ou seja, na qualidade
de elemento normativo da vida e do devir.
Como
se tratava de mudança histórica, tal “desencantamento” não se desenvolveria de
forma homogênea em todas as partes do mundo. As especificidades macro
econômicas e sociais das distintas nações, em certo sentido, determinar-no-iam.
Contudo, esse fato social apresentou um dado comum em todos os países: ter sua
germinação nas universidades. Foi nela que a filosofia, sociologia e história
de cunho secular ganharam força face ao pensamento de intelectuais como Albert
Camus, Jean Paul Sartre, Hannah Arendt, Jacques Derrida, Simone Beauvoir,
Michel Foucault, Gilles Deleuze, Judith Butler, entre outros.
Esses pensadores propagaram no ambiente
acadêmico a perspectiva que valores morais e éticos, por exemplo, são meros
constructos culturais que, de forma geral, visam controlar socialmente o que é
legítimo e o que não o é. Dessarte, a religião faria parte de um dispositivo
social que buscaria instaurar regimes de verdades tendo em vista o controle. Portanto,
tal pensamento secular propunha a libertação das amarras da verdade absoluta e
de uma lei moral, características do cristianismo na história.
Se em
um primeiro momento esse ideal socio-filosófico esteve limitado aos muros das
universidades, a partir dos levantes sociais das décadas de 1970 e 1980, ele se
expande sobremaneira, e passa a fazer parte do debate público em seu sentido
geral. Os movimentos homossexual, feminista e de legalização das drogas, por
exemplo, são a concretização social e política dessas ideias que, a piori,
estavam circunscritas à academia.
Aqui
há uma questão fundamental a se observar. Refirimo-nos ao fato de que esses
movimentos foram ganhando forma à medida em que a sociedade tornava-se, cada
vez mais, ligada à universidade, e esta, à sociedade. Em outras palavras, as
pessoas que iam para o ambiente universitário saiam de lá com uma pesada carga
de pensamento ligada à secularização, e isso foi se conformando enquanto um
fato social total.
Além
disso, quanto mais a população passava a ter acesso ao ensino universitário
humanista, mais este passou a ser influente no conjunto social. A Europa e os Estados
Unidos foram exemplos concretos disso. Lá, a forte influência do pensamento
secular ganhou corpo sob o grande progresso do ensino universitário ligado ao projeto
de “desencantamento do mundo”. Entretanto, hoje a universidade não é o pivô
desse movimento, pois o ideal secular se disseminou de tal forma que a cultura
desses países já é, em essência, secularizada.
No
Brasil este processo ainda está se iniciando, e os recentes movimentos pró
aborto, legalização das drogas, marcha das vadias, Parada gay, bem como o Projeto
de Lei Complementar 122 são sinalizadores do atual momento e mostram, assim,
que nosso país entrou na rota histórica do desencantamento do mundo e da
secularização de todas as esferas sociais. Há em curso um momento de laicização não apenas do Estado, mas da
própria sociedade brasileira.
Em
meio a todo esse arquétipo cosmológico constituído sobre os ares do homem como explicação do homem surge uma
questão crucial: a relação da igreja de
Cristo com um mundo cada vez mais sem Cristo. Mais especificamente, como
tornar objetivo o mandamento bíblico postulado por Paulo na epístola aos
Romanos 12:2b: “E não vos conformeis com
este século.” Aqui, o termo utilizado por Paulo se refere a não tomar a
forma do mundo, não deixando-se ser moldado segundo um padrão contrário às
Escrituras.
Um
dos conselhos de Paulo para que isto se realize plenamente é de que o ministro
de Deus seja apegado à Palavra (2 Timóteo 3:14), falando o que convém à sã
doutrina (Tito 2:1), uma vez que ele é o modelo do rebanho (1 Pedro 5:3). Entrementes,
diante do movimento de secularização, o modelo bíblico propagado pelos
apóstolos tem sido questionado e colocado como fruto de uma sociedade machista,
heteronormativa, e que, em face do progresso social e científico, se tornou uma
visão ultrapassada. Esse seria o tempo da diversidade e da afirmação de
diferentes identidades. Logo, o padrão bíblico de comportamento seria algo
engessado, que não incorpora os valores sociais pós-modernos.
Se
essa crítica se restringisse à crítica da igreja e do seu papel na sociedade, isto
faria parte da configuração democrática, fruto do próprio processo de discussão
social, pois numa sociedade de Direitos, o direito à discordância é assegurado
pela própria Constituição. Mas o que se observa nesses tempos é não somente a
crítica, como também a invasão da esfera religiosa por valores seculares. Concretamente,
isso significa que há uma tentativa de colonização do campo religioso pelo
campo científico e filosófico.
Talvez
a maior destas invasões seja a busca pela legitimidade do pastorado
homossexual. Vejamos o porquê.
Para
a filosofia e a sociologia de matriz pós-estruturalista[1],
como a Teoria Queer[2],
a sexualidade é produto da cultura. Ninguém pertence a um gênero predefinido. O
gênero é construído socialmente, e é, portanto, mutável. Logo, nessa
perspectiva, ninguém nasce “homem” ou “mulher”: nascemos e nossa sexualidade
vai sendo moldada, sem predefinição de um gênero específico.
É nessa linha de pensamento que grande parte dos
defensores do pastorado homossexual buscam legitimidade. De certa forma, é de
lá que eles vêm. Em algum momento passaram a ter contato direto ou
indiretamente com essa vertente teórica das ciências humanas, e foram por ela
influenciados. São os defensores da chamada Teologia Inclusiva[3].
Diante
do exposto, fica claro que os ensinamentos bíblicos que ordenam que o ministro
do evangelho deve ser esposo de uma só mulher (1 Timóteo 2:2), que Deus fez
homem e mulher desde o princípio (Gênesis 1:27; ), que o casamento bíblico é entre
macho e fêmea (Gênesis 2:18, 20; Mateus 19:4-12), e que a homossexualidade é um
desvio do plano de Deus para a vida do homem e da mulher (Levítico 20:13;
Gênesis 19:1-11; Ezequiel 16:49-50; Judas 7; Romanos 1:18-27; 1 Coríntios 6:9;
1 Timóteo 1:10) não tem valor normativo no mundo almejado pelos defensores do
“evangelho contemporâneo”, uma vez que a relativização de determinados textos
bíblicos faz parte fundamental da lente hermenêutica através da qual olham as Escrituras.
Tal
relativização tem conseqüência crucial na história da igreja, posto haver uma
inversão do padrão de Cristo para o pastorado do seu rebanho. A
homossexualidade, que antes era condenada pela igreja, passa a fazer parte do
discurso “evangélico” e se mistura com a própria qualificação dos bispos e
diáconos. Na Europa e nos Estados Unidos, nações que, como afirmamos, estão no
ápice da secularização, o pastorado homossexual é uma realidade em algumas
igrejas históricas[4], o
que mostra que o protestantismo precisa de uma reforma.
Analisando
sociologicamente, pode-se inferir que esta reforma não irá germinar nas
localidades acima mencionadas, posto elas não possuírem as condições
histórico-sociais propícias para esse acontecimento. Em outras palavras, elas
se encontram imersas em um mar de laicização e vida intra mundana que o
potencial protestante está sufocado e emudecido pelo espírito da secularização.
O amor ao evangelho tem se esfriado de quase todos, a despeito do crescente
amor ao dinheiro, à ciência e ao culto do indivíduo.
Nesse
sentido, as condições favoráveis à contestação do processo de secularização e
colonização da igreja por comportamentos não-cristãos estão mais latentes nos
países onde a sociedade pós-tradicional ainda não se desenvolveu plenamente,
tendo ainda sua configuração social e política forjadas em termos capilares. O
Brasil talvez seja o país com maior potencial para que o processo reformador
ganhe corpo, pois a maior parte da população diz ser praticante da religião
cristã. Isso significa que o cristianismo ainda é uma opção culturalmente
aceitável no país. Além disso, nossas igrejas históricas não estão ligadas às
igrejas européias e americanas que adotaram como normais práticas à revelia do
ensino bíblico.
O que é mister neste momento é engendrar uma
estrutura de ação apologética que vise preparar
a igreja para falar a um mundo secularizado, como também distinguir o
verdadeiro cristianismo daquilo que tentam implantar como parte da sua
estrutura teológica e de prática de vida. Assim, estaremos cada vez mais
efetuando o que é citado na epístola de Judas, quando este exortou os irmãos a
batalharem diligentemente pela fé, face àqueles que buscavam introduzir
ensinamentos que não correspondiam aos desígnios de Deus, deturpando o
evangelho (Judas 3).
Para
tal propósito, postulamos aqui alguns eixos de ação que a igreja de Deus
poderia implementar. Trata-se de um esboço sobre o qual acreditamos ser
profícua uma análise e discussão por parte das lideranças das igrejas, como
segue:
a) Relevar as diferenças capilares em termos teológicos e
políticos a fim de costurar um acordo em torno de um pano de fundo comum: a afirmação dos pressupostos fundamentais de
um cristianismo autêntico. Essa é a primeira condição para que o processo
reformador seja viável, tendo em vista que o que está em questão não é a luta
de igreja contra igreja, mas a afirmação cristã da fé. Enquanto essa etapa não
for superada, o secularismo avançará e buscará lançar o cristianismo para fora
do presente e do devir humano;
b) Formular conjuntamente um parecer à igreja e à
sociedade brasileira explicitando as condições elementares para o exercício do
pastorado. Isso é fundamental tanto para a refutação quanto para a afirmação da
verdade do cristianismo sobre essa questão, excluindo, assim, qualquer
possibilidade do pastorado homossexual, quer seja pelo eixo da relativização
das escrituras ou pelo viés do conhecimento científico. A emissão da opinião da
igreja é imprescindível, pois no atual estágio histórico da sociedade, a
qualificação e a desqualificação de uma determinada prática se dá fundamentalmente
pelo exercício do elemento discursivo. Em outros termos, não se pode pensar que,
apenas por não adotar o método
histórico-crítico nos seminários teológicos a igreja estará protegida, pois
a questão não diz respeito tão somente ao plano acadêmico, mas à cultura como
um todo, e é esta que influencia a sociedade hoje;
c) Criar uma comissão interdenominacional que responda
por essas questões e seja a voz da igreja cristã perante os dilemas das atuais
e futuras conjunturas sociais. Tal proposta é justificável por, em primeiro
lugar, mostrar a unidade da igreja em se tratando de assuntos em debate na
sociedade. Em segundo lugar, por ser uma forma de guardar a igreja de posições
isoladas e extremistas de alguns indivíduos que emitem opiniões em dissonância
com a Palavra de Deus;
d) Ter uma maior presença nos meios de comunicação
virtuais, principalmente nas redes sociais. Com efeito, essas mídias são elos
fundamentais para a pregação do evangelho. Vivemos em uma Sociedade em Rede na
qual o fluxo informacional está e estará cada vez mais ligado à internet. Isso
significa que o ambiente virtual fará parte crescente do dia a dia dos indivíduos,
tornando este canal uma forma de comunicação imprescindível para que nós
possamos compartilhar a mensagem Cristo;
e) Implementar, a nível interdenominacional, escolas
dominicais com classes especificamente voltadas para estudos de apologética
cristã. Em um período da história na qual as bases da fé são colocadas em
xeque, se faz urgente que a igreja prepare jovens para que, nos momentos de
questionamentos da fé nos quais surgem dúvidas acerca da sua veracidade, eles
estejam, à semelhança do que diz o apóstolo Pedro, “sempre preparados para
responder a todo aquele que pedir razão da fé em Cristo” (1 Pedro 3:15);
Destarte, acreditamos que esse conjunto de ações se
mostra fundamental para o crescimento salutar do cristianismo e para a
efetivação de uma reforma que lapide
os valores e práticas da igreja na sociedade, tendo, acima de tudo, a Palavra de Deus como base, a qual é
verdadeira e inerrante em qualquer época e lugar. Não esqueçamos que é dever da
igreja não apenas pregar o evangelho, mas também defendê-lo quando este é atacado
por homens à parte da mente de Cristo. Nossas ações ou negligências
terão implicações práticas quando estivermos vivendo a médio e longo prazo o
desenvolvimento do cristianismo no Brasil, pois isso será em grande parte
resultado da emissão ou da omissão de um posicionamento que a igreja realizará
no atual estágio da sociedade brasileira.
À guisa de um chamado à apologética cristã, lembremo-nos,
pois, das palavras do reformador Martinho Lutero: “Se eu professar com a mais alta voz e a exposição mais clara cada
porção da verdade de Deus, exceto aquela que o mundo e o diabo estão ocupados
em atacar, no exato momento, não estou confessando a Cristo, apesar de quão
ousadamente eu possa professar a Cristo. No calor da batalha é quando a
lealdade do soldado é provada; estar firme no campo de batalha, mas se esquivar
em algum ponto, é uma mera fuga e uma desgraça”.
Que
Deus nos abençoe e ilumine.
[1] Para a perspectiva pós-estruturalista, a realidade é considerada como uma construção puramente social e subjetiva, não havendo espaço para o sobrenatural, por exemplo.
[2] Entre os principais teóricos contemporâneos da Teoria Queer se destacam: Beatriz Preciado, Judith Butler, Eve Kosofsky Sedgwick e Richard Miskolci.
[3] A “teologia inclusiva” é uma abordagem segundo a qual, se Deus é amor, aprovaria todas as relações humanas, sejam quais forem, desde que haja este sentimento. Ver Augustus Nicodemus: Um Engano Chamado "Teologia Inclusiva" ou "Teologia Gay". Disponível em http://tempora-mores.blogspot.com.br/2013/06/um-engano-chamado-teologia-inclusiva-ou.html.
[4] Igreja Anglicana do Reino Unido e Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos.